Crónica de Alexandre Honrado – O fim das coisas públicas

Alexandre Honrado

 

Crónica de Alexandre Honrado
O fim das coisas públicas

 

Há indícios fortes do declínio das Repúblicas como forma orientada de governação dos povos, não só porque os povos deixaram de ser uma realidade prioritária, substituídos pelo individuo, pelo individualismo e pela individuação, como a ascensão das direitas impede a coisa pública, opõe-se aos coletivos comprometidos com a construção participada e participativa da política e sobretudo teme, como ato de crianças medrosas perante a admoestação pelo seu mau comportamento, a festa nutricional das democracias, sempre ameaçadas pelo frenesim esfomeado do presente e das responsabilidade de cada um no relacionamento com os outros. Essa ascensão ainda não está no auge, mas inquieta-nos. É que ao fundo do seu caminho está a sociedade musculada, perseguida, censurada, limitada nos seus direitos, sem liberdades nem garantias, está a ditadura, a repressão, a prisão, a demência de poucos subjugando muitos.

Fantasmas vão sendo corporizados pela realidade. Putin, o grande promotor e mecenas das direitas europeias, tem os genes dos czares e pretende, como um Ivã o terrível que num acesso da sua loucura matou o próprio filho, levar um país miserável e em falência óbvia a expandir-se à custa do sangue alheio e de uma política eficaz de um irrealismo assassino e temível. Ivã IV, o tal terrível, teve longo reinado  e viu múltiplas conquistas (as do do Canato de Cazã, do Canato de Astracã e do Canato da Sibéria, algumas muitas extensões áridas ou inférteis mas promotoras de um  mapa muito vasto), transformando a Rússia num estado multiétnico e multirreligioso abrangendo quase mil milhões de hectares, cerca de 4 046 856 km².

Com um Ocidente mais rico do que a Rússia, a ideia de uma eurásia política regressa às ideias e aos pesadelos. A verdade é que a Europa é uma excrescência da Ásia e uma migalha no mapa do mundo.

Neste caminho de loucura e estratégia muito definida, as repúblicas, as coisas públicas, diluem-se. Insisto que chegámos a este cenário crítico submetidos pela falsa querela “os teus assassinos são piores do que os meus”, que constituem o ridículo braço de ferro entre direita e esquerda, dois conceitos há muito anquilosados, a ignorar talvez a atualização de ideias pela emergência de uma nova esquerda não marxista e não herdeira de muitos erros do passado, pela incapacidade de atualizar fórmulas e linguagens de políticas que sejam sistemas operativos aplicados às verdadeiras necessidades das pessoas, pela incapacidade de transmitir alternativas e sobretudo pelo alimentar de falsidades, a começar pelas da comunicação de massas, destinadas a criar o mau estar coletivo, o adubo do populismo, a confusão pública e pior ainda o desinteresse das pessoas pelas decisões e pelas instituições onde deviam participar mudando o rumo dos acontecimentos.

É por isso que a Res Publica, a coisa pública está a definhar. Perdido o sentido crítico ficou a emissão de juízos de valor e uma desesperada forma de todos terem razão num mundo falho de razoabilidade, o que é o mesmo que dizer sem bom senso nem proporcionalidade, o que parece ser, ainda e em resumo, sem futuro desejável.

 

Alexandre Honrado


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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